- DISCURSO
Quebrar a persistência da inflação
Discurso de Christine Lagarde, presidente do BCE, no Fórum do BCE sobre Banca Central de 2023 em Sintra, Portugal, dedicado ao tema “Estabilização macroeconómica num contexto de inflação volátil”
Sintra, 27 de junho de 2023
A inflação na área do euro é demasiado elevada e continuará a sê‑lo durante demasiado tempo. A natureza do desafio da inflação na área do euro está, porém, a mudar.
Assistimos a uma descida da taxa de inflação, com o desvanecimento dos choques que inicialmente a fizeram subir e a transmissão das nossas medidas de política monetária à economia. Contudo, as repercussões desses choques ainda estão a fazer‑se sentir, tornando a descida da inflação mais lenta e o processo inflacionista mais persistente.
A persistência advém do facto de a inflação estar a repercutir‑se na economia por fases, com os diferentes agentes económicos a tentar transmitir os custos uns aos outros. Embora as projeções dos nossos especialistas já apontassem para essa persistência há algum tempo, revimos a nossa avaliação face aos novos dados disponíveis.
Os decisores de política monetária precisam de responder a esta dinâmica de forma decisiva para garantir que não conduz a uma espiral autorrealizável, alimentada por uma desancoragem das expectativas de inflação.
Por conseguinte, a principal questão que enfrentamos hoje é a seguinte: como podemos quebrar esta persistência?
No Conselho do BCE, deixámos claro que dois elementos da orientação da nossa política monetária serão fundamentais: teremos de estabelecer níveis “suficientemente restritivos” para as taxas de juro e de mantê‑las nesses níveis “enquanto for necessário”.
Ambos os elementos são afetados pela incerteza quanto à persistência da inflação e à força da transmissão da política monetária à inflação.
Estabelecer o “nível” e a “duração” certos será crucial para a nossa política monetária, à medida que prosseguimos o nosso ciclo de aumento da restritividade monetária.
Nas minhas observações de hoje, abordarei as razões pelas quais o processo inflacionista passou a ser mais persistente e o que isso implica para a orientação da nossa política monetária.
A minha intenção não é sinalizar quaisquer decisões futuras, mas enquadrar as questões que a política monetária enfrentará no futuro próximo.
O choque inflacionista
A economia da área do euro enfrentou uma série de choques inflacionistas sobrepostos desde que a pandemia terminou[1]. Desde o início de 2022, estes choques não só fizeram subir o nível de preços, em 11%, como também nos levaram a transferir mais de 200 mil milhões de euros para o resto do mundo sob a forma de um imposto sobre os termos de troca[2].
Numa situação como esta, a reação natural de qualquer agente económico é tentar transmitir os aumentos de preços a outros intervenientes na economia. Na área do euro, podemos identificar duas fases distintas neste processo.
A primeira fase foi liderada pelas empresas, que reagiram à subida acentuada dos custos dos fatores de produção, defendendo as suas margens e transmitindo os aumentos de custos aos consumidores.
A intensidade desta reação foi invulgar. Em prévios choques de termos de troca na área do euro, as empresas tenderam a absorver a subida de custos nas margens de lucro, porque o crescimento lento fez com que os consumidores estivessem menos dispostos a tolerar aumentos de preços[3]. Porém, as condições especiais observadas no ano passado alteraram esta regularidade.
A grande magnitude do crescimento dos custos dos fatores de produção tornou mais difícil para os consumidores avaliar se os aumentos de preços resultavam de custos ou lucros mais elevados, induzindo uma transmissão mais rápida e forte. Ao mesmo tempo, a procura não satisfeita nos setores em reabertura, a poupança em excesso, as políticas expansionistas e as restrições da oferta resultantes de estrangulamentos proporcionaram às empresas maior margem para testar a procura dos consumidores com preços mais altos.
Por esta razão, os lucros unitários contribuíram cerca de dois terços para a inflação interna[4] em 2022, ao passo que, nos 20 anos anteriores, o seu contributo médio foi cerca de um terço[5]. Tal levou, por sua vez, os choques a repercutirem‑se na inflação muito mais rapidamente e de forma mais forte do que no passado.
Esta primeira fase está, contudo, a começar a dissipar-se.
Em grande parte, devido aos preços mais reduzidos dos produtos energéticos, a inflação homóloga dos preços no produtor já baixou 42 pontos percentuais relativamente ao seu máximo no verão passado. Embora esta descida esteja a demorar a repercutir‑se nos preços mais em geral, está a refletir‑se parcialmente num decréscimo generalizado da inflação global e na estabilização de algumas medidas da inflação subjacente – em especial, medidas baseadas em exclusão e medidas que captam os efeitos persistentes dos produtos energéticos sobre os preços no conjunto da economia.
Simultaneamente, a elevada inflação reduziu a procura interna, que registou uma contração de 2% nos dois últimos trimestres[6], e o impulso de consumo gerado pela poupança em excesso está a desvanecer‑se[7]. Os efeitos iniciais da maior restritividade da nossa política monetária estão também a tornar‑se visíveis, sobretudo em setores como a indústria transformadora e a construção, que são mais sensíveis a alterações das taxas de juro.
Face a esta combinação – descida dos custos dos fatores de produção e diminuição da procura – assistimos a um abrandamento pronunciado do crescimento dos lucros unitários, na maioria dos setores, no primeiro trimestre deste ano.
Um processo inflacionista mais persistente
A segunda fase do processo inflacionista está, porém, a começar agora a tornar‑se mais forte.
Os trabalhadores ficaram, até à data, a perder com o choque inflacionista, tendo sofrido grandes decréscimos dos salários reais, o que está a desencadear um processo sustentado de “convergência em alta” dos salários, com os trabalhadores a tentar recuperar perdas. Tal está a fazer subir outras medidas da inflação subjacente que captam mais pressões internas sobre os preços – em particular medidas da inflação sensível aos salários e medidas da inflação interna.
Como as negociações salariais em muitos países europeus são plurianuais e inertes, este processo desenrolar‑se‑á obviamente ao longo de vários anos. As nossas projeções mais recentes indicam que os salários crescerão mais 14%, entre agora e o final de 2025, e que, em termos reais, recuperarão plenamente o nível anterior à pandemia.
Não obstante esta “convergência em alta” já ser tomada em consideração há algum tempo nas nossas perspetivas quanto à inflação, o efeito da subida dos salários na inflação foi recentemente amplificado por um crescimento da produtividade mais baixo do que o projetado anteriormente, o que está a gerar custos unitários do trabalho mais elevados. A par de surpresas em alta anteriores, esta é uma razão importante pela qual procedemos recentemente a uma revisão em alta das nossas projeções para a inflação subjacente, ainda que as nossas expectativas quanto aos salários permaneçam, em geral, inalteradas.
Dois elementos do atual ciclo económico estão a contribuir para esta dinâmica – e ambos podem também persistir.
O primeiro é a resiliência do emprego em relação ao crescimento do PIB.
Normalmente, esperaríamos que o abrandamento do crescimento económico no último ano tivesse reduzido um pouco o crescimento do emprego. No entanto, o facto é que, nos últimos três trimestres, o mercado de trabalho tem apresentado um desempenho melhor do que sugeriria uma regularidade baseada na “lei de Okun”.
Essa desconexão reflete, em parte, a acumulação acrescida de mão de obra pelas empresas, num contexto de escassez de mão de obra, o que é visível no atual desvio entre o total e a média de horas trabalhadas[8]. Isso está a afetar o crescimento da produtividade e, como se espera que o desemprego registe nova descida ligeira no horizonte de projeção, a motivação das empresas para acumular mão de obra poderá não desaparecer rapidamente.
O segundo elemento a contribuir para uma produtividade agregada mais fraca é a composição do crescimento do emprego, que se concentra em setores com um crescimento da produtividade estruturalmente reduzido.
Desde a pandemia, o emprego registou o maior crescimento na construção e no setor público (ambos com um decréscimo de produtividade), bem como nos serviços, que apresentaram apenas um pequeno crescimento da produtividade. Estas tendências poderão também persistir em alguns desses setores nos próximos anos, dada a relativa fraqueza da indústria transformadora e as mudanças de longo prazo no sentido do emprego nos serviços.
Tudo isto significa que enfrentaremos vários anos de aumento dos salários nominais, sendo as pressões sobre os custos unitários do trabalho exacerbadas por um fraco crescimento da produtividade. Neste enquadramento, a política monetária tem de alcançar duas metas importantes.
Primeiro, temos de assegurar que as expectativas de inflação permanecem ancoradas, perante o desenrolar do processo de “convergência em alta” dos salários. Apesar de atualmente não se assistir a uma espiral salários‑preços, nem a uma desancoragem das expectativas, quanto mais a inflação se mantiver acima do objetivo, maiores serão esses riscos. Isto significa que temos de assegurar o retorno atempado da inflação ao nosso objetivo de médio prazo de 2%.
Segundo, para que tal aconteça, precisamos de assegurar que as empresas absorvem a subida dos custos do trabalho nas margens. Se a política monetária for suficientemente restritiva, a economia pode alcançar uma desinflação geral, enquanto os salários reais recuperam algumas perdas. Todavia, tal está dependente de a nossa política monetária refrear a procura durante algum tempo, de modo que as empresas não possam continuar a apresentar o comportamento de fixação de preços que observámos recentemente.
A análise de sensibilidade realizada por especialistas do BCE sublinha os riscos que enfrentaríamos se, ao invés, as empresas tentassem defender as suas margens. A título de exemplo, caso as empresas recuperassem 25% da margem de lucro perdida que as nossas projeções indicam, a inflação em 2025 seria substancialmente mais alta do que a projeção de referência – em quase 3%.
Logo, face a um processo de inflação mais persistente, precisamos de uma política mais persistente – uma que não só produza um nível de restritividade suficiente atualmente, mas também mantenha condições restritivas até estarmos confiantes de que esta segunda fase do processo inflacionista foi resolvida.
A orientação da política monetária
Em termos concretos, quais são as implicações para a nossa política monetária?
Ainda não assistimos ao impacto total dos aumentos acumulados das taxas de juro decididos desde julho passado – que ascendem a 400 pontos base. Porém, o nosso trabalho ainda não terminou. Exceto se ocorrer uma alteração substancial das perspetivas de inflação, continuaremos a aumentar as taxas em julho.
Ao avançarmos cada vez mais para taxas restritivas, temos de prestar especial atenção a dois aspetos da nossa política. Primeiro, a nossa atuação no que respeita ao “nível” das taxas e, segundo, a nossa comunicação sobre decisões futuras e sobre a forma como isso influencia a esperada “duração” do período de permanência das taxas nesse nível.
O Conselho do BCE forneceu orientações sobre ambos os aspetos. Declarou claramente que “futuras decisões assegurarão que as taxas de juro diretoras do BCE atinjam níveis suficientemente restritivos, para lograr um retorno atempado da inflação ao objetivo de médio prazo de 2%, e sejam mantidas nesses níveis enquanto for necessário”.
Duas fontes de incerteza afetam o “nível” e a “duração” desejados das nossas taxas diretoras.
Em primeiro lugar, como enfrentamos incerteza quanto à persistência da inflação, o nível em que as taxas atingirão um máximo dependerá da situação. Dependerá de como a economia e várias das forças que descrevi evolvem com o tempo. Além disso, terá de ser continuamente reavaliado ao longo do tempo.
Nestas condições, é improvável que, no futuro próximo, o banco central possa declarar com toda a confiança que as taxas máximas foram atingidas. É por este motivo que a nossa política tem de ser decidida reunião a reunião e de permanecer dependente dos dados.
Em segundo lugar, enfrentamos incerteza acerca da força da transmissão da política monetária.
A força da transmissão liga as decisões atuais às expectativas quanto à política futura e, consequentemente, afeta a orientação da política monetária. O quão forte a transmissão se revelar na prática determinará o efeito de um dado aumento das taxas sobre a inflação e isso refletir‑se‑á na trajetória esperada da política monetária.
A incerteza acerca da transmissão da política monetária resulta do facto de a área do euro não ter atravessado uma fase sustentada de aumentos das taxas de juro desde meados da década de 2000 e de as taxas nunca terem subido tão rapidamente. Tal levanta a questão de quão célere e fortemente a política monetária será transmitida às empresas – por via de despesas sensíveis aos juros – e às famílias, através dos pagamentos de crédito à habitação.
No caso das empresas, a análise do BCE conclui que os choques de política monetária são, por norma, transmitidos mais rapidamente e de modo mais forte à indústria transformadora, refletindo a maior sensibilidade do setor às taxas de juro, sendo o seu o impacto nos serviços mais fraco e desfasado.
A principal questão que hoje se coloca é saber se o setor dos serviços acabará por “convergir em baixa” – o que já observámos em ciclos anteriores – ou se permanecerá imune aos efeitos do aumento da restritividade da política monetária durante mais tempo do que no passado, atendendo à força da procura e do emprego no setor[9].
No caso das famílias, existem provas de que, no presente ciclo de aumento da restritividade monetária, demorará mais tempo até as alterações da política monetária se repercutirem nos encargos com juros, dado que a percentagem de famílias com empréstimos hipotecários de juro fixo é mais elevada do que em meados da década de 2000.
Ao mesmo tempo, quando se verificar uma reavaliação do preço das hipotecas, o efeito restritivo poderá ser maior: os rácios da dívida bruta em relação ao rendimento, que realçam a capacidade de serviço da dívida, são mais elevados do que em anteriores ciclos de aumento da restritividade monetária, ao passo que a percentagem de proprietários de habitação com uma hipoteca aumentou[10].
Ambas as fontes de incerteza só se desvanecerão com o tempo. É por este motivo que estabelecemos que as nossas decisões de política monetária futuras dependeriam, primeiro, das perspetivas inflacionistas, segundo, da dinâmica da inflação subjacente e, terceiro, da força da transmissão da política monetária.
Não obstante, para garantir que a incerteza não interfere com a orientação pretendida da nossa política monetária – em termos tanto de “nível” como de “duração” – são claros dois aspetos.
Primeiro, precisamos que as taxas atinjam níveis “suficientemente restritivos” para fixar a restritividade da nossa política monetária.
Segundo, precisamos de comunicar claramente que permanecerão “nesses níveis enquanto for necessário”. Tal assegurará que os aumentos das taxas não suscitam expectativas de uma inversão demasiado rápida da política monetária e permitirá a concretização do impacto total das nossas medidas anteriores.
Nesse tempo, precisamos de avaliar cuidadosamente a força da transmissão da política monetária, a fim de evitar um erro na calibração num sentido ou noutro.
Conclusão
Permitam‑me que conclua.
A política monetária tem, atualmente, apenas uma meta: o retorno atempado da inflação ao nosso objetivo de médio prazo de 2%. Estamos empenhados em alcançar essa meta em qualquer circunstância.
Como escreveu Helen Keller, “os nossos piores inimigos não são circunstâncias beligerantes, mas espíritos vacilantes”[11].
Alcançamos progressos significativos, mas – confrontados com um processo inflacionista mais persistente – não podemos vacilar, nem ainda declarar vitória.
Para mais pormenores sobre estes choques, ver Lagarde, C. (2022), “Monetary policy in a high inflation environment: commitment and clarity”, palestra organizada pelo Eesti Pank, dedicada ao Professor Ragnar Nurkse, Tallinn, 4 de novembro.
Cumulativamente, desde o segundo trimestre de 2022 até à mais recente divulgação de dados (o primeiro trimestre de 2023), a área do euro transferiu 213 mil milhões de euros para o resto do mundo em resultado de perdas nos termos de troca. Este valor corresponde a 1,6% do produto interno bruto (PIB) da área do euro.
Arce, O., Hahn, E. e Koester, G., “How tit‑for‑tat inflation can make everyone poorer”, Blogue do BCE, 30 de março.
Como captado pelo deflator do PIB.
Arce, O., Hahn, E. e Koester, G. (2023), op. cit.
O último trimestre de 2022 e o primeiro trimestre de 2023.
Battistini, N., Di Nino, V. e Gareis, J. (2023), “The consumption impulse from pandemic savings ‒ does the composition matter?”, Boletim Económico, BCE, a publicar.
Ver Arce, O., Consolo, A., Dias da Silva, A. e Mohr, M. (2023), “More jobs but fewer working hours”, Blogue do BCE, 7 de junho.
Não obstante alguma diminuição em junho, o desvio entre o Índice de Gestores de Compras (IGC) para os serviços e o IGC para o produto na indústria transformadora continua a ser elevado.
Existe heterogeneidade entre os países da área do euro, tendo, porém, alguns registado uma diminuição da percentagem de proprietários de habitação que ainda estão a pagar uma hipoteca.
Keller, H. (1903), “My Future As I See It”, The Ladies’ Home Journal, vol. XX, n.º 12, Philadelphia, p. 11.
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